Somos atualmente seres motorizados. Disto não há dúvida. As rodas
praticamente substituíram nossos pés. Mas, esse achado benfazejo do
automóvel também nos trouxe uma conseqüência: a de ficarmos confinados
dentro desses invólucros de aço, dessas maravilhas mecânicas e tecnológicas
que usamos para nos locomover.
Gosto de observar o que acontece dentro dos carros, e de imaginar o que não é
possível ver. Isto me serve, pelo menos, para atenuar a chateação que podem
trazer os cada vez maiores e inevitáveis engarrafamentos.
Eis o inusitado: um menino, certamente trazido da escola pela mãe, tem na mão
um aviãozinho de papel. Seu bracinho descreve aquelas curvas no céu do sonho
com o combustível da imaginação. O menino está preso no carro, mas sua alma
com certeza voa pelo espaço, livre da lentidão do trânsito.
A bela moça, sozinha ao volante, lança olhares ao seu dileto amigo de todas as
manhãs, cúmplice de sua vaidade: o espelho retrovisor. Ajeita o cabelo, examina
a boca pintada com esmero, confere, sem dúvida, se está suficientemente bela
para mais um dia da eterna, gostosa e necessária batalha pela sedução.
Aquele engravatado se arrisca, pois, enquanto cuida das pequenas arrancadas
no pára-e-anda do trânsito lento, lê um jornal. Imagino que estará conferindo a
queda ou elevação da bolsa de valores, ou buscando, nesta e naquela página,
viradas com rapidez, alguma notícia política que vá interferir com seus negócios,
que podem já não estar indo lá muito bem.
O fumante inveterado mantém o vidro do automóvel abaixado. Prefere o risco do
assalto a sentir-se sufocado pela fumaça produzida pela própria insensatez do
vício, prazeroso mas miserável, difícil de vencer, que lhe oferece um pouco de
prazer e uma válvula de escape de suas preocupações.
O jovem de óculos escuros segue o padrão dos motoristas insensatos: a
despeito do trânsito engarrafado, tenta ser mais rápido e esperto que todo
mundo, e enfia o carro por aqui e por ali, provocando a raiva daqueles que fecha
e quase amassa com seu carro de motor possante, mas impotente nesta
lentidão inevitável do trânsito.
Carro novíssimo, recém-adquirido, sem dúvida, a mocinha morena trai, nos
gestos e na forma como conduz o automóvel, sua insegurança de motorista
novata. Seus olhos negros revelam como está assustada; as mãos crispadas
parecem querer arrancar o volante do lugar. E lá se vai, aos solavancos,
deixando o carro morrer, uma ou duas vezes, e vivenciando um sofrimento que
não tinha ao andar de ônibus, embora não tivesse também a comodidade e
sobretudo o status de agora.
O velho motorista de taxi é a própria imagem do enfado. Gordo, tem o aspecto
dos que jamais se exercitaram. Parece que foi construído ali mesmo onde está,
com a imensa barriga anatomicamente encaixada sob o volante, no qual pousa
uma única mão que gira com destreza aquela roda, que na verdade parece a
roda da sua vida. Parece indiferente a tudo; aparenta ter vivido tudo naquele
pequeno universo do seu carro, no qual viveu também, de certo modo, os
dramas e alegrias, sofreu grosserias, mereceu gentilezas ou ganhou também a
indiferença dos milhares de passageiros que transportou.
Outros, muitos outros, motoristas merecem observação: o do ônibus, cortês ou
ensandecido em relação aos motoristas dos automóveis; o da ambulância, do
carro de bombeiros ou de polícia, que furam o engarrafamento, fazendo
manobras incríveis, quase inimagináveis, verdadeiros milagres de direção
arriscada, mas necessária, com a ajuda decisiva de suas sirenes para abrir
caminho.
As vans são um caso à parte. Elas revivem, quase todas, o tempo dos lotações
– a mesma maluquice, a mesma irresponsabilidade ziguezagueante. Dentro
delas, passageiros quase sempre sobressaltados, mas que geralmente não têm
escolha, seja pelo preço mais barato, seja pela quase certeza de chegar mais
cedo, ao trabalho, ou de volta a casa, sobrando um tempinho a mais para uns
beijos nos filhos, um carinho na esposa ou no esposo, ou mesmo para não
perder de todo o capítulo da novela...
A preocupação com a segurança e com a privacidade trouxe as películas que
agora cobrem cada vez mais os vidros, dificultando essa observação por parte
da gente. Mas ali dentro, nesse micro-universo preservado, continuam a viver
pessoas que se movem com seus automóveis, que ouvem rádio, se distraindo
com músicas, ou se preocupando com as notícias. Elas, ironicamente, se
certificam, por noticiários especializados, que o trânsito está cada vez pior, que
esses nossos invólucros de aço e conforto estão cada vez mais lentos, cada vez
mais presos nessas procissões automobilísticas que se arrastam pelas ruas.
Êpa! Eu me distraí com estas reflexões e os impacientes atrás de mim já
buzinam, caro leitor.
Vamos em frente!
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J. Carino é professor universitário aposentado, consultor e escritor, sendo autor
de “Olhando a Cidade & Outros Olhares” (UniverCidade Editora, 2004), livro de
crônicas sobre os bairros do Rio de Janeiro, com apresentação de Ruy Castro.
Para conhecer mais sobre o autor visite a sua página www.jcarino.com.br
domingo, maio 11, 2008
sábado, maio 10, 2008
A arte ontem e hoje sob a ótica filosófica
Friedrish Schiller foi um grande autor de peças teatrais que o tornaram, ao lado
de Henrik Ibsen, um referência do pré-romantismo alemão. Os dois dramaturgos
criaram um movimento em seu país chamado "Sturm Und Drang" que se
predispunha a elevar a arte como elemento consolidador de duas naturezas
humanas – o racional e o sensível. Schiller defendia a arte como forma de
educação de pessoas que, por determinado motivo, não possui em sua
personalidade um destes elementos. Segundo ele, o homem racional só pode
se tornar sensível quando observa o belo, ou seja, quando se torna "estético".
Baseado neste conceito, o filósofo Nietzsche aborda em seu livro "Natureza da
Tragédia" o nascimento do teatro dionisíaco na Grécia do Séc. VI a.C. e
defende a tese de que o movimento teatral surgiu da necessidade humana de
formalizar a arte através do ritual de convenções expostas no espelho teatral e
da necessidade de extravasar este mesmo formalismo através da embriagues
dionisíaca dos cultos teatrais arcaicos.
Nietzsche confrontou Kant quando este último criou a teoria do desinteresse das
obras de arte. Para Kant, a arte não pode sofrer julgamentos, pois não possui
"propósito prático". Já o filósofo Stendhal chamou o belo de "Promessa de
Felicidade", o que foi defendido por Nietzsche para a crítica e degustação da
arte.
Antes de Aristóteles, o autor de "Poética", Platão já indagava o verdadeiro valor
das obras de arte e se indagava constantemente: "Para quê pintar uvas tão
perfeitas se elas já existem no mundo real"? De certo modo o filósofo
menosprezava as obras de arte por entender que derivam da necessidade de
copiar e expor conflitos para obter audiência do público.
Não cabe a nós entender Kant, tampouco duvidar de sua retórica, mas não seria
necessidade orgânica de um artista expor sua obra a fim de conquistar o
reconhecimento do público? Esse reconhecimento não advém da
verossimilhança de sua arte em relação à natureza? Como denotar genialidade
e brilhantismo de um artista senão desta forma? Talvez os grandes surrealistas
tenham a resposta. Com a passagem dos tempos, Pablo Picasso e outros
puderam reinventar a realidade divina com a reprodução de imagens subjetivas
que denotavam o ponto de vista de um único homem. Seria essa a fórmula da
obra prima? Abraço Nietzsche quando, em defesa ao trabalho do artista, afirma
que a verdade da obra de arte reside no fato de ser ilusória e subjetiva.
Todos temos uma verdade sobre o mundo dentro de nós. Se trabalharmos os
lados racionais e sensíveis, aprendermos as técnicas de uma arte específica
com a fome dos leões, certamente compartilharemos o nosso olhar, isto é,
nossa matéria prima, com os outros irmãos de guerra, tão cegos a vagar por
este mundo de arames farpados.
João Pedro Roriz é escritor.
de Henrik Ibsen, um referência do pré-romantismo alemão. Os dois dramaturgos
criaram um movimento em seu país chamado "Sturm Und Drang" que se
predispunha a elevar a arte como elemento consolidador de duas naturezas
humanas – o racional e o sensível. Schiller defendia a arte como forma de
educação de pessoas que, por determinado motivo, não possui em sua
personalidade um destes elementos. Segundo ele, o homem racional só pode
se tornar sensível quando observa o belo, ou seja, quando se torna "estético".
Baseado neste conceito, o filósofo Nietzsche aborda em seu livro "Natureza da
Tragédia" o nascimento do teatro dionisíaco na Grécia do Séc. VI a.C. e
defende a tese de que o movimento teatral surgiu da necessidade humana de
formalizar a arte através do ritual de convenções expostas no espelho teatral e
da necessidade de extravasar este mesmo formalismo através da embriagues
dionisíaca dos cultos teatrais arcaicos.
Nietzsche confrontou Kant quando este último criou a teoria do desinteresse das
obras de arte. Para Kant, a arte não pode sofrer julgamentos, pois não possui
"propósito prático". Já o filósofo Stendhal chamou o belo de "Promessa de
Felicidade", o que foi defendido por Nietzsche para a crítica e degustação da
arte.
Antes de Aristóteles, o autor de "Poética", Platão já indagava o verdadeiro valor
das obras de arte e se indagava constantemente: "Para quê pintar uvas tão
perfeitas se elas já existem no mundo real"? De certo modo o filósofo
menosprezava as obras de arte por entender que derivam da necessidade de
copiar e expor conflitos para obter audiência do público.
Não cabe a nós entender Kant, tampouco duvidar de sua retórica, mas não seria
necessidade orgânica de um artista expor sua obra a fim de conquistar o
reconhecimento do público? Esse reconhecimento não advém da
verossimilhança de sua arte em relação à natureza? Como denotar genialidade
e brilhantismo de um artista senão desta forma? Talvez os grandes surrealistas
tenham a resposta. Com a passagem dos tempos, Pablo Picasso e outros
puderam reinventar a realidade divina com a reprodução de imagens subjetivas
que denotavam o ponto de vista de um único homem. Seria essa a fórmula da
obra prima? Abraço Nietzsche quando, em defesa ao trabalho do artista, afirma
que a verdade da obra de arte reside no fato de ser ilusória e subjetiva.
Todos temos uma verdade sobre o mundo dentro de nós. Se trabalharmos os
lados racionais e sensíveis, aprendermos as técnicas de uma arte específica
com a fome dos leões, certamente compartilharemos o nosso olhar, isto é,
nossa matéria prima, com os outros irmãos de guerra, tão cegos a vagar por
este mundo de arames farpados.
João Pedro Roriz é escritor.
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