domingo, agosto 20, 2006

Carta de Eduardo Galeano

Texto enviado por Eduardo Galeano à Via campesina Brasil, em homenagem àsmulheres camponesas. Para ser lido no ato politico de debate e solidariedadeàs mulheres, dia 16de agosto, salão de atos da UFRGS- Porto alegre.Salva-vidas de chumboEduardo Galeano, Montevideo. Pelo que diz a voz de comando, nossos países devem acreditar naliberdade do comércio (embora ela não exista), honrar os compromissos(embora eles sejam desonrosos), atrair investimentos (embora eles sejamindignos) e ingressar no cenário internacional (embora pela porta dosfundos). Ingressar no cenário internacional: o cenário internacional é omercado. O mercado mundial, onde compram-se países. Nada de novo. A AméricaLatina nasceu para obedecê-lo, quando o mercado mundial nem era chamadoassim, e de um jeito ou de outro continuamos atados ao dever de obediência. Esta triste rotina dos séculos começou com o ouro e a prata, econtinuou com o açúcar, o tabaco, o guano, o salitre, o cobre, o estanho, aborracha, o cacau, a banana, o café, o petróleo... O que esses esplendoresnos deixaram? Nos deixaram sem herança nem bonança. Jardins transformados emdesertos, campos abandonados, montanhas esburacadas, águas apodrecidas,longas caravanas de infelizes condenados à morte antecipada, palácios vaziosonde perambulam fantasmas... Agora, chegou a vez da soja transgênica e da celulose. E outravez repete-se a história das glórias fugazes, que ao som de seus clarins nosanunciam longas tristezas. Será que o passado ficou mudo? Nós nos negamos a escutar as vozes que nos alertam: os sonhos domercado mundial são os pesadelos dos países que se submetem aos seuscaprichos. Continuamos aplaudindo o seqüestro dos bens naturais que Deus, ouo Diabo, nos deu, e assim trabalhamos pela nossa própria perdição econtribuímos para o extermínio da pouca natureza que nos resta neste mundo. Argentina, Brasil e outros países latino-americanos estãovivendo a febre da soja transgênica. Preços tentadores, rendimentosmultiplicados. A Argentina é, e já faz tempo, o segundo maior produtormundial de transgênicos, depois dos Estados Unidos. No Brasil, o governo deLula executou uma dessas piruetas que pouco favor fazem à democracia, edisse sim à soja transgênica, embora seu partido tenha dito não durante todaa campanha eleitoral. Isso é pão hoje e fome amanhã, como denunciam alguns sindicatosrurais e organizações ecologistas. Mas já sabemos que os peões ignorantes senegam a entender as vantagens do pasto de plástico e da vaca a motor, e queos ecologistas são uns estraga-prazeres que não dizem coisa-com-coisa. Os advogados dos transgênicos afirmam que não está provado queprejudiquem a saúde humana. Em todo caso, também não está provado que não aprejudiquem. E já que são assim tão inofensivos, por que os fabricantes desoja transgênica se negam a esclarecer, nas embalagens, que vendem o quevendem? A etiqueta de soja transgênica não seria sua melhor publicidade? Acontece que existem evidências de que estas invenções do DoutorFrankenstein fazem mal à saúde do solo e reduzem a soberania nacional.Exportamos soja ou exportamos solo? Estamos ou não estamos presos nasgaiolas da Monsanto e de outras grandes empresas de cujas sementes,herbicidas e pesticidas passamos a depender? Terras que produziam de tudo para o mercado local agora seconsagram a um único produto para a demanda estrangeira. Nós nosdesenvolvemos para fora e nos esquecemos de dentro. O mono-cultivo é umaprisão, sempre foi, e agora, com os transgênicos, é muito mais. Adiversidade, por sua vez, liberta. A independência se reduz ao hino e àbandeira, se a soberania alimentar não é assentada. A autodeterminaçãocomeça pela boca. Só a diversidade produtiva pode nos defender das súbitasdespencadas de preços que são costume, mortífero costume, do mercadomundial. As imensas extensões destinadas à soja transgênica estãoarrasando os bosques nativos e expulsando os camponeses pobres. Poucosbraços ocupam essas explorações altamente mecanizadas, que ao mesmo tempoexterminam as plantações pequenas e as hortas familiares com os venenos quefumigam. Multiplica-se o êxodo rural às grandes cidades, onde se supõe queos expulsos vão consumir, se tiverem sorte, o que antes produziam. É aagrária reforma: a reforma agrária pelo avesso. A celulose também está na moda, em vários países. Agora, o Uruguai está querendo se transformar num centro mundialde produção de celulose para abastecer de matéria prima barata as longínquasfábricas de papel. Trata-se de monocultivos para a exportação, na mais puratradição colonial: imensas plantações artificiais que dizem ser bosques e seconvertem em celulose num processo industrial que arroja detritos químicosnos rios e torna o ar irrespirável. No Uruguai, começaram por duas fábricas enormes, uma das quaisjá está a meio construir. Depois surgiu outro projeto, e já se fala deoutro, e outro mais, enquanto mais e mais hectares estão sendo destinados àfabricação de eucaliptos em série. As grandes empresas internacionais nosdescobriram no mapa do mundo, e caíram de súbito amor por este Uruguai ondenão há tecnologia capaz de controlá-las, o estado outorga subsídios e evitaimpostos, os salários são raquíticos e as árvores brotam num piscar deolhos. Tudo indica que nosso país, pequenino, não irá agüentar oasfixiante abraço desses grandalhões. Como costuma acontecer, as bênçãos danatureza se transformam em maldições da história. Nossos eucaliptos crescemdez vezes mais depressa que os da Finlândia, e isso se traduz assim: asplantações industriais serão dez vezes mais devastadoras. No ritmo deprodução previsto, boa parte do território nacional está sendo espremida atéa última gota de água. Os gigantes sedentos vão secar nosso solo e nossosubsolo. Trágico paradoxo: este país foi o único lugar do mundo em que apropriedade da água foi submetida a plebiscito popular. Por esmagadoramaioria, os uruguaios decidiram, em 2004, que a água seria propriedadepública. Não haverá maneira de evitar o seqüestro dessa vontade popular? A celulose, é preciso reconhecer, transformou-se em algo assimcomo uma causa patriótica, e a defesa da natureza não desperta entusiasmo.Pior: em nosso país, algumas palavras que não eram palavrões, comoecologista e ambientalista, estão se transformando em insultos quecrucificam os inimigos do progresso e os sabotadores do trabalho. Celebra-se a desgraça como se fosse boa notícia. Mais valemorrer de contaminação do que morrer de fome: muitos desempregados acreditamque não existe outro remédio além de escolher entre duas calamidades, e osmercadores de ilusões desembarcam oferecendo milhares e milhares deempregos. Acontece que uma coisa é a publicidade, e outra é a realidade. OMST, movimento dos camponeses sem terra, divulgou dados eloqüentes, e quenão valem apenas para o Brasil: a celulose gera um emprego a cada 185hectares, e a agricultura familiar cria cinco empregos a cada dez hectares. As empresas prometem o melhor. Trabalho a rodo, investimentosmilionários, controles rígidos, ar puro, água limpa, terra intacta. E eu mepergunto: já que é assim, por que não instalam essas maravilhas em Punta delEste, para melhorar a qualidade de vida e estimular o turismo em nossobalneário principal?Tradução: Eric Nepomuceno, Rio de JaneiroDistribuição IPS- Inter-press-service, Italia. Dia 16 de agosto de 2006.

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