domingo, maio 11, 2008

No Trânsito

Somos atualmente seres motorizados. Disto não há dúvida. As rodas

praticamente substituíram nossos pés. Mas, esse achado benfazejo do

automóvel também nos trouxe uma conseqüência: a de ficarmos confinados

dentro desses invólucros de aço, dessas maravilhas mecânicas e tecnológicas

que usamos para nos locomover.

Gosto de observar o que acontece dentro dos carros, e de imaginar o que não é

possível ver. Isto me serve, pelo menos, para atenuar a chateação que podem

trazer os cada vez maiores e inevitáveis engarrafamentos.

Eis o inusitado: um menino, certamente trazido da escola pela mãe, tem na mão

um aviãozinho de papel. Seu bracinho descreve aquelas curvas no céu do sonho

com o combustível da imaginação. O menino está preso no carro, mas sua alma

com certeza voa pelo espaço, livre da lentidão do trânsito.

A bela moça, sozinha ao volante, lança olhares ao seu dileto amigo de todas as

manhãs, cúmplice de sua vaidade: o espelho retrovisor. Ajeita o cabelo, examina

a boca pintada com esmero, confere, sem dúvida, se está suficientemente bela

para mais um dia da eterna, gostosa e necessária batalha pela sedução.

Aquele engravatado se arrisca, pois, enquanto cuida das pequenas arrancadas

no pára-e-anda do trânsito lento, lê um jornal. Imagino que estará conferindo a

queda ou elevação da bolsa de valores, ou buscando, nesta e naquela página,

viradas com rapidez, alguma notícia política que vá interferir com seus negócios,

que podem já não estar indo lá muito bem.

O fumante inveterado mantém o vidro do automóvel abaixado. Prefere o risco do

assalto a sentir-se sufocado pela fumaça produzida pela própria insensatez do

vício, prazeroso mas miserável, difícil de vencer, que lhe oferece um pouco de

prazer e uma válvula de escape de suas preocupações.

O jovem de óculos escuros segue o padrão dos motoristas insensatos: a

despeito do trânsito engarrafado, tenta ser mais rápido e esperto que todo

mundo, e enfia o carro por aqui e por ali, provocando a raiva daqueles que fecha

e quase amassa com seu carro de motor possante, mas impotente nesta

lentidão inevitável do trânsito.

Carro novíssimo, recém-adquirido, sem dúvida, a mocinha morena trai, nos

gestos e na forma como conduz o automóvel, sua insegurança de motorista

novata. Seus olhos negros revelam como está assustada; as mãos crispadas

parecem querer arrancar o volante do lugar. E lá se vai, aos solavancos,

deixando o carro morrer, uma ou duas vezes, e vivenciando um sofrimento que

não tinha ao andar de ônibus, embora não tivesse também a comodidade e

sobretudo o status de agora.

O velho motorista de taxi é a própria imagem do enfado. Gordo, tem o aspecto

dos que jamais se exercitaram. Parece que foi construído ali mesmo onde está,

com a imensa barriga anatomicamente encaixada sob o volante, no qual pousa

uma única mão que gira com destreza aquela roda, que na verdade parece a

roda da sua vida. Parece indiferente a tudo; aparenta ter vivido tudo naquele

pequeno universo do seu carro, no qual viveu também, de certo modo, os

dramas e alegrias, sofreu grosserias, mereceu gentilezas ou ganhou também a

indiferença dos milhares de passageiros que transportou.

Outros, muitos outros, motoristas merecem observação: o do ônibus, cortês ou

ensandecido em relação aos motoristas dos automóveis; o da ambulância, do

carro de bombeiros ou de polícia, que furam o engarrafamento, fazendo

manobras incríveis, quase inimagináveis, verdadeiros milagres de direção

arriscada, mas necessária, com a ajuda decisiva de suas sirenes para abrir

caminho.

As vans são um caso à parte. Elas revivem, quase todas, o tempo dos lotações

– a mesma maluquice, a mesma irresponsabilidade ziguezagueante. Dentro

delas, passageiros quase sempre sobressaltados, mas que geralmente não têm

escolha, seja pelo preço mais barato, seja pela quase certeza de chegar mais

cedo, ao trabalho, ou de volta a casa, sobrando um tempinho a mais para uns

beijos nos filhos, um carinho na esposa ou no esposo, ou mesmo para não

perder de todo o capítulo da novela...

A preocupação com a segurança e com a privacidade trouxe as películas que

agora cobrem cada vez mais os vidros, dificultando essa observação por parte

da gente. Mas ali dentro, nesse micro-universo preservado, continuam a viver

pessoas que se movem com seus automóveis, que ouvem rádio, se distraindo

com músicas, ou se preocupando com as notícias. Elas, ironicamente, se

certificam, por noticiários especializados, que o trânsito está cada vez pior, que

esses nossos invólucros de aço e conforto estão cada vez mais lentos, cada vez

mais presos nessas procissões automobilísticas que se arrastam pelas ruas.

Êpa! Eu me distraí com estas reflexões e os impacientes atrás de mim já

buzinam, caro leitor.

Vamos em frente!

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J. Carino é professor universitário aposentado, consultor e escritor, sendo autor

de “Olhando a Cidade & Outros Olhares” (UniverCidade Editora, 2004), livro de

crônicas sobre os bairros do Rio de Janeiro, com apresentação de Ruy Castro.

Para conhecer mais sobre o autor visite a sua página www.jcarino.com.br

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