Nesta quarta-feira, o arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, excomungou médicos do SUS que praticaram um aborto numa menina de nove anos estuprada pelo padrasto. Para justificar sua postura, declarou: ‘A lei de Deus está acima de qualquer lei humana. Então, quando uma lei humana, quer dizer, uma lei promulgada pelos legisladores humanos, é contrária à lei de Deus, essa lei humana não tem nenhum valor’. Sobre o mesmo fato, o Ministro Temporão, da Saúde, declarou o seguinte: ‘Fiquei chocado com os dois fatos: com o que aconteceu com a menina e com a posição desse religioso que, equivocadamente, ao dizer que defende uma vida, coloca em risco uma outra tão importante’.
Estamos diante de discursos opostos. Enquanto o bispo afirma que seu discurso é universal e, portanto, se aplica a qualquer situação, o ministro parte da necessidade de se adequar discurso e realidade concreta. Para o bispo, o fato (um aborto) está subordinado ao conceito (o aborto); para o ministro, o fato origina o conceito. O ministro parte da análise de fatos concretos para emitir seu juízo; o bispo engloba fatos concretos dentro de uma conceituação universal.
Aqui não se trata apenas de um embate entre um bispo fundamentalista e um ministro de mentalidade aberta. Trata-se de leituras opostas da realidade. O bispo parte da idéia de que ‘conceitos’ (sagrados) dispensam averiguação de fatos, pois ‘captam’ em si a realidade. A idéia é: ‘Aborto é aborto, em qualquer circunstância’. Ao afirmar que o aborto de uma menina de nove anos, estuprada, constitui um pecado contra a lei divina (e, portanto, universal), o bispo parte do pressuposto de que existe um discurso que ‘capta’ tudo o que existe no mundo, sem nenhuma averiguação de circunstâncias. Essa maneira de pensar está em flagrante oposição ao que nos ensina o maior teólogo do cristianismo, Santo Tomás de Aquino, quando afirma: ‘Nada há na inteligência que não provenha dos sentidos (nossos cinco sentidos corporais)’. Santo Tomás diz que o conhecimento humano, para ser verdadeiro, tem de partir necessariamente da observação (visão, audição, etc.) de fatos.
Ao longo da história ocidental, a não-observância dessa sábia orientação tem originado desastres de enormes dimensões e muitos sofrimentos inúteis. Em nome do conceito ‘heresia’ instalou-se a inquisição, em nome da ‘guerra contra os infiéis’ organizaram-se as cruzadas, em nome da ‘pureza racial’ o nazismo acendeu os fornos de Auschwitz, em nome da ‘war on terror’ Bush - ainda recentemente - mandou invadir o Iraque, em nome da ‘moralidade’ um bispo austríaco declarou - uns dias atrás - que a Katrina (furacão que devastou New Orleans) era um ‘castigo de Deus’ (talvez por causa das clínicas autorizadas de aborto existentes na cidade).
O bispo de Recife está igualmente em descompasso com seus colegas que redigiram, em 2007, o ‘Documento de Aparecida’ baseado no princípio tomista do ‘ver, julgar, agir’. Não se pode agir (nem falar publicamente) sem antes ‘ver’ (observar o fato concreto) e ‘julgar’ (formar uma idéia a partir da observação da realidade). Afirmar, sem pesquisar fatos concretos, que terrorismo é terrorismo, heresia é heresia, homossexualidade é homossexualidade, divórcio é divórcio, guerra santa é guerra santa, aborto é aborto, pode levar a comunidade humana à repetição dos piores desastres.
Os médicos do SUS de Recife, dando seus depoimentos, partiram da averiguação de fatos. O bispo de Recife, pelo contrário, abusa da autoridade e se apropria de um discurso que não lhe compete, ao pregar a desobediência a leis devidamente estabelecidas numa sociedade laica e democrática. É preocupante constatar que esse discurso perigoso não receba o devido repúdio, depois de tantas lições do passado. Tocou-me a palavra do Ministro Temporão quando disse que ficou ‘chocado’. Eu também fiquei.
Eduardo Hoonaert *
* Historiador
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário