quinta-feira, setembro 06, 2007

Trocando sons por cores

- Vamos parar um pouco. Não agüento esta cor laranja!

Onde está a cor de laranja? Estamos no Trastevere, em Roma, e tudo

que vejo são os bares, as pessoas na rua neste começo de primavera

gelado, e os sinos da igreja tocando. Já é quase noite de um dia

nublado, de modo que sequer podemos culpar o sol pela ilusão de

ótica.

Caminho com uma atriz que conheço já há algum tempo, mas que nunca

antes tivemos oportunidade de conversar o suficiente. Paro como

pediu, mas apenas por educação, já que aquela mulher equilibrada,

profissional, deve ser mais louca do que eu pensava.

Entramos em um restaurante para jantar. Pedimos risoto com trufas,

e um bom vinho. Conversamos sobre a vida, e de novo um comentário

absurdo:

- Esta comida está retangular!

Ela nota minha cara de espanto. Comida retangular?

- Você deve achar que estou louca; não estou. Houve um momento de

minha vida em que pensei que era daltônica (pessoa que confunde

uma cor com outra). Fui ao médico, e descobri que tenho um

distúrbio neurológico comum.

Depois que voltei para casa e imediatamente comecei a pesquisar no

computador, fiquei surpreso com algo que jamais tinha ouvido falar

em minha vida: sinestesia. Uma condição em que um estímulo de

determinado sentido provoca a percepção em outro. A pessoa que

sofre deste tipo de distúrbio, confunde sons com cheiros, visão

com paladar, cores com tato (não necessariamente nesta lógica).

Alguns estudos científicos alegam que a visão de auras em seres

humanos nasceu daí; discordo destes estudos, penso que todos nós

temos realmente um corpo astral que pode ser visto quando

alteramos a percepção. Mas o que mais me atraiu na pesquisa foi

saber que o que percebemos através de nossos cinco sentidos não é

uma verdade absoluta. As pessoas sinestésicas têm uma noção do

mundo completamente distinta da nossa, embora isso não os impeça

de levarem uma vida relativamente normal. Minha amiga atriz

trabalha na TV italiana todos os dias, e diz que terminou por se

acostumar.

Indo mais adiante na pesquisa, descobri um estudo na revista

britânica Cognitive Neuropsychology. Uma equipe de pesquisadores

do University College de Londres, chefiada pelo Dr. Jamie Ward,

foi mais além: alguns sinestésicos podem perceber cores em

palavras carregadas de emoção, como “amor” ou “filho”. A grande

maioria deles termina associando o nome de alguém à determinada

tonalidade. Ward descreve o caso de uma moça identificada por

G.W., que simplesmente pelo fato de escutar determinados nomes,

tinha seu campo de visão inteiramente coberto por determinada cor

associada àquela palavra.

Em uma revista de arte, aprendo que as aureolas que vemos em torno

das cabeças dos santos podem ter sido criadas por algum pintor

sinestésico na antiguidade, sendo repetidas pelos outros sem que

ninguém se perguntasse à razão daquele círculo de luz. O prêmio

Nobel de Física de 1965, certa vez disse em uma entrevista:

“quando escrevo equações no quadro-negro, noto os números e as

letras em cores diferentes”.Diz um artigo que Feynman faz parte de

um grupo de pessoas para quem o número dois pode ser amarelo, a

palavra carro tem gosto de geléia de morango, e certa nota musical

evoca a imagem do círculo.

Ward diz que a sinestesia não é absolutamente uma doença: “ao

contrário dos transtornos psiquiátricos, o sinestésico não tem

nenhuma função básica comprometida, e sim um sintoma positivo,

ausente na maioria dos outros seres humanos”.O grande problema

está em crianças em idade escolar, que não conseguem entender por

que sentem as coisas de maneira diferente dos outros.

Para minha grande surpresa, alguns estudos apontam que uma em cada

300 pessoas é sinestésica (embora a maioria diga que a relação é

de uma em 2.000).

No dia seguinte telefonei para a minha amiga e perguntei que

sensação ela sempre associava comigo. “Suave” foi sua resposta.

Bem, nem sempre a sinestesia tem lógica.

Paulo Coelho

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